sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Clarice.

Com um saco de pães em suas mãos, caminhando pelo subúrbio de uma cidade grande, Clarice, uma mulher de idade, cabelos tingidos de preto e traços fortes marcados por rugas, observa as pessoas que passam por ela desviando o olhar, sem a encarar, e, às vezes, sem nem notar sua presença. Naquela manhã de domingo, ela saíra para comprar pão, mas distraiu-se ao ver, da porta da padaria, o movimento causado por um jogo de futebol. Parou por um instante e observou as ruas, as toneladas de concreto dos prédios altíssimos, as pessoas que por ali passavam. Lembrou-se da antiga padaria que costumava ficar naquela esquina, com suas paredes pintadas de amarelo e sem as pichações que agora cobrem uma parede azul turquesa. Lembrou-se de quando ainda era possível olhar o horizonte e ver mais do que apenas concreto... Aquela cidade já não era a mesma desde que Clarice completara uns 30 anos. Mas ela, ela não parecia ter evoluído conforme seus passos - que ficaram mais lentos -, nem conforme suas rugas - cada vez mais aparentes. Ela olhou-se de cima à baixo e, se não fosse pelo aspecto enrugado de suas mãos, não perceberia que tanto tempo havia passado. O mesmo tecido de roupas antigas estampa as suas saias, o mesmo sapato que comprara há anos cobre seus pés.
Em vão, Clarice tenta chamar a atenção. Abre um sorriso para um casal de namorados, pára o trânsito ignorando os semáforos, dá um pedaço de pão ao cachorro sujo do mendigo e canta o hino do São Paulo no meio da torcida que marcha pela rua. O casal a ignora, a olha com desprezo e a deixa sorrindo para ela mesma. Os carros, com seus vidros blindados, buzinam sem parar. O cachorro do mendigo abana o rabo para ela, enquanto o mendigo está ocupado demais fazendo contas para ver se suas moedas conseguem pagar mais uma dose de cachaça. E, na euforia da torcida, eles nem sequer reparam a presença de uma velha senhora.
Ela, então, decide voltar para o seu pequeno apartamento e continuar a costurar um casaco para o inverno que se aproxima. Atravessa uma rua – desta vez observando os semáforos – e outra, caminha mais um quarteirão e observa um velhinho manco entre a calçada e uma avenida. Clarice oferece ajuda, os dois atravessam a avenida e ele sorri agradecido. Ela continua ao lado do senhor, até ele entrar num restaurante e sumir - como todas as outras pessoas.
Percebendo que havia passado da entrada de seu prédio, a velha senhora volta alguns quarteirões, acorda o porteiro que dorme, e entra no elevador. Fica olhando os andares a piscar. Um, dois, três, quatro, cinco... Tantos apartamentos num espaço tão pequeno, tantas histórias mal-contadas, tantas vidas desconhecidas vigiadas por olhares alheios. Seis, sete, oito.
Clarice abre a porta, caminha até a sua caixa de costura e percebe que já não sente mais o prazer que sentia antes, quando costurava as roupas do seu já falecido marido. Encontra botões de calças masculinas, tecidos de gravatas coloridas que costumava fazer para ele, e broches para chapéus. Triste, ela olha para a sua aliança – que nunca teve coragem de arrancar dos dedos.
Caminha até a janela e vê, no prédio ao lado, um punk falido que raspa seu moicano e joga pela janela seus cigarros queimados, seus papéis rabiscados, suas garrafas vazias de rum e seus vinis esquecidos. Alguém ali, tão próximo e tão distante dela, decidira mudar de vida. Ao ver isso, Clarice sorri confiante.
Pega sua caixa de costura, abre, e observa que a maioria dos seus objetos remete a uma vida que já não é mais dela. Olha para a sua aliança e, só então, percebe que aquilo já não mais a pertence. Abre a janela sorrindo, deixa o vento bater no seu rosto e joga dali, um a um, todos os objetos que a fazem viver do passado. Enquanto os objetos caem pela sua janela, uma criança que caminha pela rua se assusta, soltando seu balão de gás em forma de um personagem caricato e colorido. O balão viaja às nuvens, passando pela janela de Clarice. A leveza há muito esquecida por ela a embriaga. Como seria maravilhoso voltar a viver... Clarice sorri, mergulhando o seu passado no vazio.

Aline Biz.

8 comentários:

Carina disse...

Meu deus biza...é tão lindo que eu não sei nem o que dizer.

gostei muito!!!

Ian F. disse...

sensacional!!! história linda e inspiradora... parabéns!!

Renata disse...

que bonito.

Marcelo disse...

Lindo.

Tati P. disse...

É esse olhar cuidadoso e atencioso sobre o dia-a-dia, sobre as pessoas, sobre a nossa vida que brota entre esse concreto todo e sobre essa prisão de vidro que a maioria das pessoas vive, que faz esse texto tão verdadeiro.

Victor Meira disse...

Aline, é adorável. Sensível e imagético. A linearidade e as ações instanâneas dão um toque de roteiro, e também colaboram pra que narrativa fique ainda mais visual. E as cenas vão se alterando entre polos de tristeza e leveza, de desesperança e lucidez.

É engraçado como Clarice cria personagens à sua volta. Como ela julga o propósito das moedas do mendigo, ou como ela assume, ou intui, que o punk falido DECIDE mudar de vida (tudo bem, os fatos pareciam condizentes). Clarice vaga pelo mundo já quase sem estar ali. Praticamente nada que ela faz muda algo à sua volta. E ela briga com isso, como que acostumada por uma vida toda, a participar do mundo. E, fundamentalmente, ela interage com o mundo num universo muito próprio, por meio de pequenas percepções, julgamentos e sentidos.

Belo conto, Aline. Que venham muito mais. Isso é uma preciosidade pro Drink.

Beijos!

Tulio Malaspina disse...

ALine, que ótima narrativa!!!
quero BIZ!

Biza disse...

Muito obrigada!
Fiquei tímida.
(...)

A princípio, esse texto era pra ser um argumento de um curta-metragem. Como acabou ficando muito interiorizado e subjetivo pra transformar em imagem, preferi transformar em um conto...

Beijos!